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Luiz Henrique, um garoto com fome de bola

  • Foto do escritor: Luana Reis
    Luana Reis
  • 28 de jul. de 2018
  • 11 min de leitura

Atualizado: 14 de set. de 2018


O polivalente do É Nóis Que Tá FC | Foto: Luana Reis

“Um refúgio”, foi como o futuro chefe de cozinha e são-paulino ensandecido Luiz Henrique definiu o futebol de várzea na nossa primeira prosa, ao fim do jogo entre o É Nóis Que Tá e Sabin FC, no CDC Jardim Ibirapuera.


Foi no último sábado (21), um dia ensolarado – a princípio – e tranquilo no morro que envolve o campinho, que tivemos a primeira parte do bate papo sobre a peleja amadora e o rapaz pincelou parte de seu amor, sua fome de bola.


Fui acompanhar o jogo, a convite de um outro perfilado - com as entrevistas ainda em andamento -, quando conversei com o rapaz e saquei: havia algo a mais por trás de sua declaração de amor ao futebol.


Uma síntese, quase que nas entrelinhas, do jogo difícil que fora sua infância. Somente no segundo encontro que o torcedor do Mais Querido deu a entender, enfim, o porquê de definir a várzea como o fez, de usar o termo “refúgio”, ou mesmo dizer que seu time, no qual atua há cerca de um ano e meio, é uma família.


Que sua história de vida traduz a de tantas outras pessoas na periferia, a de tantos meninos que veem a bola como uma válvula de escape – lembra o relato de Gabriel Jesus sobre a importância da peleja varzeana, na sua infância e na de tantos outros garotos menos abastados.


O primeiro jogo difícil


Luiz é, em síntese, um rapaz de 21 anos, humilde, extrovertido, confiante e sonhador. Um sonhador que nasceu e se criou na periferia paulistana e torce-joga-respira futebol, seja o amador ou profissional.


Para compreender ao menos uma parte de sua personalidade é necessário retroceder um pouco, voltar no tempo, ao primeiro jogo difícil que o amante da peleja tivera de disputar: a infância.


O são-paulino é filho de pais separados e teve de amadurecer mais cedo que o comum para um jovem da periferia de São Paulo. Que conforme contou, as drogas e a criminalidade o rondavam já na infância, dentro da casa onde residia com os pais, a irmã, um tio e primos, na época no distrito do Campo Limpo – também localizado no lado sul do mapa da Paulicéia.


– Quando eu morava no Campo Limpo a casa era invadida. Tanto é que o dono a pediu [para minha família] e eu estava na escola. Minha mãe foi me buscar com um caminhão, com toda a mudança [no baú]. Só me disse ‘vamo embora’, eu entrei no caminhão, chegamos na casa da minha avó e, mãe que é mãe, nunca vai recusar... – contava Luiz, sobre uma das tantas mudanças que fizeram quando ainda era um menino, até que Wesley, primo do boleiro, o interrompeu.

– Até a polícia chegou a invadir a casa – contou o primo.

– Minha casa sempre foi ponto de droga, por causa dos meus tios...

– ... da nossa família, que é meio desandada – complementou.

– Alguns dias eu chegava em casa, colocava o caderno de um lado e tinha um monte de drogas do outro. Abria o caderno para estudar, e meu tio colhendo cocaína, essas coisas, ao [meu] lado. Nem por isso eu queria aquela vida – explica Luiz. – Não é porque meu tio é bandido, que ele usa drogas que eu vou ser [bandido ou traficante] também.


Ele levara o primo, Wesley Ribeiro, quem presenciou as primeiras partidas difíceis de sua vida, as intempéries de sua infância na casa invadida do Campo Limpo, para acompanhar a nossa conversa – que se deu na segunda-feira (23).



Wesley é santista, mas ao contrário de Luiz, não é tão chegado à peleja, apesar de ter aparecido trajado numa camisa do Barcelona.


– Só acompanho, mas o fissurado é o Luiz.

Conforme Luiz contou, aos 12 anos, ele prometeu à mãe que se algum dia se envolvesse com drogas ela seria a primeira pessoa a saber, ou mesmo iria para longe dela, para evitar que ela sofresse, já que passara por tal situação com o pai do rapaz – um dos motivos que culminou na separação, somado à traição e agressões.


Para ele, blindar-se de tudo isso foi uma grande vitória. “Para as pessoas pode ser uma coisa simples, mas para mim, foi como um sonho mesmo. Eu consegui [não me envolver com as drogas, com o crime]. Mesmo com as minhas amizades... Aprendi a ser um homem aos 10 anos, aos 12 eu já saía, mas consegui, considerando a nossa realidade, chegar aos 18 sem envolvimento algum [com drogas, com o tráfico]”.



O primo santista, Wesley | Foto: Luana Reis


Também foi no Campo Limpo que, aos dez anos de idade, o polivalente do É Nóis Que Tá FC tivera de lidar com a saída de seu pai, Walter Antônio, também boleiro, que o presenteou com o time do coração: o São Paulo Futebol Clube. Ao falar dessa fase e indicar um episódio que o marcou, a meu pedido, a voz de Luiz quase que embargou, no nosso segundo encontro, também no campinho do Jd. Ibirapuera.


“Teve um dia que me marcou muito. Minha mãe já tinha [se] separado do meu pai… Tinha um pão, apenas, em casa. Como eu era o mais velho, eu [me] lembro. Minha mãe cortou o pão ao meio, deu-o para mim e para minha irmã, e saiu. Eu perguntei ‘mãe, você não vai comer com a gente?’, e ela disse que não, que a gente poderia comer [sem ela]. Ela só não comeu [também] porque só tinha aquele [pão]”, relatou, com a voz claramente afetada pela lembrança. Ele prometeu para si mesmo que aquilo não se repetiria, que se tornaria, praticamente, o homem da casa, conforme fosse crescendo.

A torcedora número um


E ao contar sua história Luiz não deixou, em momento algum, de mencionar D. Ivanira. Segundo ele, ela o apoia em todos os seus projetos, principalmente o bate-bola de final de semana que o filho tanto ama.


“Ela sempre esteve comigo. Quando eu jogava no Joerg Bruder, ela – que já não estava casada com meu pai – e a minha avó sempre me levavam para jogar... [Ela] sempre me levou à escolinha. [E] quando há final na várzea minha mãe sempre está comigo, junto da minha irmã, me apoiando”, até mesmo “quando o joelho está podre”, mesmo brigando, na tentativa de cuidar do filho, que volta e meia teima e dribla a mãe para entrar em campo.

Quando criança, Luiz vira a mãe ser agredida e não pudera ajudar.

“Meu pai amarrou uma camisa preta e amarela, do time que ele jogava na várzea, na mão, pra não machucar ela, pra não deixar hematomas. Eu vi e não podia fazer nada, pois não sabia o que estava acontecendo.”

Segundo ele, após a separação, a mãe “quem deveria ser o equilíbrio da casa”, meio que “virou a cabeça”. Mas, ainda assim, ele afirma que compreende as ações, por tudo o que ela teve de passar para criá-lo.


Hoje, D. Ivanira, junto a Eloiza, irmã do boleiro, e Wesley, que trabalha numa padaria, que sustentam a casa alugada – no Conjunto Promorar, do Jardim São Luís –, já que Luiz está desempregado há quase dois meses.


Peleja a todo custo


Desde a infância, paralelamente às dificuldades, à ausência do pai, Luiz se concentrava mais e mais na pelada amadora. “Sempre gostei de futebol. Qualquer coisa que fosse redonda eu chutava, na rua”, pontuou. Na escola ele não dera ‘dor de cabeça’ para mãe, pelo o que relatou – e o primo Wesley não contestou.



O campinho em que joga com o time do ENQT FC é envolvido pelo morro, no Jardim Ibirapuera, bairro da Zona Sul de São Paulo | Foto: Luana Reis


Sua disciplina favorita era, justamente, a educação física. Era o momento de o menino botar a bola no pé – mesmo as que não eram de futebol.


– Quando tinha vôlei eu ficava bravo, chutava a bola de vôlei, de basquete.

Seu fascínio pela bola foi passado pelo pai. Que o são-paulino Walter Antônio, quando jovem, chegou a disputar uma partida profissionalmente pelo Atlético-MG. Porém, devido a atritos familiares, ele teve de deixar o estado e vir para São Paulo, onde conheceu a mãe de Luiz, apresentada pelo pai de Wesley.


Aqui, jogando na peleja amadora, Walter levava o rapaz para acompanhar os jogos, por volta dos quatro anos de idade. Aos cinco ou seis, Luiz fora matriculado na primeira escolinha de futebol: o Taboão da Serra.


De lá, foi para o Joerg Bruder, do bairro de Santo Amaro, e chegou, posteriormente, ao São Paulo, seu clube do peito.


No Tricolor, ele permaneceu por 30 dias e teve a oportunidade de conhecer Rogério Ceni, seu ídolo máximo.


“Nasci em 1996 e o título que ficou marcado na minha memória é o 2005. Se você me perguntar sobre o time de ponta a ponta, eu sei. Em 2005 o Rogério ‘deitava’. Tem outros que admiro também, como o Luiz Fabiano - admiro demais! -, mas em 2005, quando [o São Paulo] foi campeão Mundial, ele estava no auge. Sempre foi meu ídolo… até pela história de vida”, devido ao fato de o goleiro ter iniciado a trajetória no Mais querido como reserva e, “com esforço e dedicação”, ter se tornado, então o titular e cravado o nome como maior goleiro da história do clube.

Depois da passagem pelo clube do coração, Luiz ainda conheceu a escolinha do Santos Futebol Clube e, por fim, foi para ao São Bernardo, já por volta dos 13~14 anos, onde acabou lesionando o joelho e desistiu de jogar profissionalmente. Desde então, é a peleja amadora que acolhe o rapaz.


‘Várzea, sim, por amor’


A várzea é uma família para Luiz Henrique.


– Só quem está na várzea, que convive - como você vai fazer agora - sabe qual é o sentimento [envolvido]. Não tem como explicar. É como um amor incondicional. O mesmo amor que você sente pelo seu time, pelo seu clube, você sente pela equipe da várzea.

E essa sensação de acolhimento se fortaleceu num dado episódio em que Luiz foi quase que um ‘talismã’ numa virada do ENQT FC.


“Quando machuquei o joelho, a gente estava perdendo, eu [já] tinha desperdiçado dois gols e sofri uma lesão. Mas, o time criou uma força depois disso. Nesse dia nós ganhamos, e quando foram para o vestiário, todos falaram que foi isso [que aconteceu]. Ganharam por mim. Acabou o jogo, eu fui para o hospital e o pessoal me contou.”

E com os olhos marejados, o jogador pontuou que só tinha “a agradecer aos amigos”, visto que,

“não foi só um lance de eu me machucar, levantar e ir ao médico. Eles me acolheram, me mandavam mensagens, o Vinicius, por exemplo, me mandou várias, perguntando se eu precisava de alguma coisa”.


Vinicius, o V10, está no time desde a fundação, há oito anos, e administra, joga no meio-campo e também assume liderança se preciso – como ocorreu no sábado –, afirmou que não é um amigo tão íntimo de Luiz, o considera, mas o conhece há pouco tempo e pelo o que observa aos fins de semana, ele “é um cara de grupo. [Pois] mesmo quando não tinha vaga no time, ele ia aos jogos, comprou a camisa [do ENQT FC]” antes de atuar pela equipe, e foi isso que o deu um lugar no time.


+ ACRÉSCIMOS


+Para V10, o fato de não jogar no time e ainda assim comprar a camisa deu moral a Luiz, porque o próprio presidente do time, Kiko, segundo ele, abandonou o time Sport do ENQT FC;

+Perguntado sobre, Luiz afirmou que vê a situação como chata, pois, no fim, todos defendem a mesma camisa;

+Na várzea, há duas categorias de time: o Sport e o Veteranos. Quem tem até 30 anos atua pelo Sport, a partir disso, integra o Veteranos. Ainda que haja essas categorias, os times defendem a mesma camisa. No ENQT FC, segundo os relatos, as equipes parecem oponentes.


SEGUE O JOGO


Já no fator técnico, V10 acredita que o aspirante a chef de cozinha tem mais talento no futebol de salão, mas prefere deixar isso de lado, pois acredita “que não tem esse direito [de avaliar por isso e tirar alguém do time]. Pois não é só futebol, é a vida do cara. Às vezes a pessoa precisa daquilo ali [a peleja], é no campo que ele tem o ponto de fuga dele”.


- Um cara pra somar, que você pode contar pra qualquer coisa. Se você falar que o quer como goleiro, ele vai, vai ficar bravo, mas vai te ajudar. – pontuou V10, ao pincelar sobre a personalidade do rapaz.

Além do É Nóis Que Tá FC (ENQT – FC), Luiz Henrique atua em mais três times – outro de campo e dois de salão – como grande parte das pessoas que compõe a modalidade varzeana –, mas não mencionou os nomes durante as entrevistas.


Antes de tudo, ‘Salve o Tricolor Paulista’


Luiz venceu o jogo árduo da infância, junto à família, já que o tio, com quem morou quando criança "tomou jeito", nas palavras de Wesley. O rapaz sofreu bastante com a ausência do pai, após a separação, mas encontrou na peleja e no Tricolor paulista uma forma de acolhimento. Em sua saga como torcedor de um dos quatro grandes, ele já abdicou de festa surpresa:


– São Paulo campeão em cima do Goiás, tinha uma festa surpresa na minha casa e eu no bar, comemorando, gritando com a rapaziada, e minha tinha foi me buscar... Tinha uma festa surpresa na minha casa. Ela me puxou para lá, entrei, cantamos o ‘parabéns’ e saí para rua, pra comemorar. O importante é o meu São Paulo.

E em 2012, com 16 anos, o rapaz concluiu um dos três cursos de gastronomia que já realizara - este, na Câmara Municipal de São Paulo, pelo projeto Restaurante-Escola. Ao invés de comemorar a formatura, mais um passo de sua caminhada rumo à titulação de chef, ele comemorou algo, nas suas palavras, muito maior: o hexacampeonato tricolor.


“No dia da minha formatura o São Paulo foi campeão, em 2012. Campeão da Sul-Americana. Eu não fui para a formatura, porque eu fui para o estádio. E minha mãe não sabia...”, contou, rindo.

+1 info de acréscimo


+Luiz trabalhou em um dos restaurantes da ex-Masterchef Jiang, durante seis meses.




Perguntado sobre o elenco deste ano, ele mal me deixou concluir a pergunta sobre o goleiro Sidão:


– Não! – adiantou, quando quis saber se supre a defesa da meta tricolor.

Ele só gostaria que Hernanes voltasse, “só para levantar o caneco” do Brasileirão 2018, que para ele já está selado: é do Tricolor paulista, “o Flamengo não vai chegar”. Mesmo após, “a tristeza” gerada na semifinal deste Paulistão, quando o elenco deu esperanças à torcida, mas acabou eliminado pelo Corinthians.


Das lembranças da Copa


Em ano de Copa do Mundo, o torcedor ensandecido estava confiante na tutela do Seo Adenor, o Tite, “mesmo sendo são-paulino”. E ao falar das Copas que o fizeram desaguar, ele resgatou a de 2006, que o entristeceu, pois

“a Seleção era impecável. Eu era moleque e fiquei apaixonado vendo aquele time jogar. Outra coisa: foi a última Copa do Mundo do Ronaldo [Fenômeno], do Ronaldinho, quem eu admirava também. Então a gente deveria ter levado aquele Mundial.”

– Era para ter ganhado mesmo. – comentou Wesley.

– Eu chorei com a de 2006, [com] a de 2010 não fiquei tão triste, a de 2014 também não. Porque o time que o Felipão montou foi uma merda.”


Para ele, para ao menos poupar o Brasil do 7x1 histórico, faltou “um meio de campo forte. Ele [Felipão] levou Bernardo, Oscar, Hulk… Isso é Seleção para ser campeão do mundo?!”, resmungou.


Dos troféus da vida


Quando perguntei-o sobre sonhos. Luiz me contou dois. Um já fora realizado:


“Um sonho já realizado, como falei, prometi à minha mãe e para mim mesmo que aquela cena”, da falta de alimento em casa, “não se repetiria mais”.

Quanto ao futuro, o troféu pessoal que o são-paulino quer levantar está fora das quatro linhas.


– Eu não falo [a palavra, o termo] sonho [exatamente], porque vivo um dia de cada vez, vivo o momento. Mas, o que eu almejo, como contei, sempre gostei de gastronomia e quero [cursar] a faculdade. Este é o meu foco. Já pensou entrar na Anhembi Morumbi, no primeiro dia de aula? Pagar [o curso] com o meu dinheiro?!... Isto, pra mim, é como se fosse um sonho.

Um boleiro driblado


Já no encerramento, quando o pedi para se definir, o jogador que supre qualquer função no ENQT FC, do meio-campo ao ataque, perdeu o domínio da prosa:


“Não sei o que falar, de verdade”, com a voz embargada, enquanto Wesley o observava e ria da surpresa do primo com a pergunta. “Não vou saber te responder agora”, finalizou.

Talvez me responda, um dia, depois de levantar seu troféu – o ‘toque blanche’ –, num cumprimento, já como chef de cozinha. Enquanto isso, ele vai para casa esperar pela próxima partida, na várzea da vida.

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